A ideia para hoje de manhã era passar pelo posto de turismo e pelo mercado de fruta e legumes. Tinha encontrado o turismo encerrado e colocado o assunto de lado, mas no website da rede de museus de Évora descobri a informação de que estaria aberto ao fim-de-semana, da parte da manhã. Errado. Fechado como antes. Primeira missão do dia falhada.
Pelo menos era de caminho. O mercado municipal não fica longe e no exterior, aos sábados de manhã, há mercado. Parece mesmo que em anos normais faz-se também uma feira de velharias. Mas hoje, em época de COVID-19 e com chuva prometido, apenas alguns agricultores a vender o produto do seu trabalho.
Sobre o mercado… bem, mais ou menos. Poucos vendedores, poucos compradores. Castiço. Produtos que parecem genuínos, de produção local, sem adições estranhas vindas do mercado abastecedor como acontece no mercado de Faro que costumo visitar. Comprei uma alface, algumas clementinas, um ramo de hortelã para fazer um chá à Marrocos.
Um mercado hoje um pouco pobre e triste
O interior do mercado é depressivo. A maioria dos espaços, que não são muitos, está fechado. As pessoas não vão ali, faz-me pena. Gostava que fosse de outra forma.
Cá fora de novo. Um cãozinho muito peludo e simpático procura a sua família desesperadamente. Dá-me pena, preocupa-me. Ele olha como uma pessoa. Parando e rodando a cabeça, varrendo o seu campo de visão. Corre um pouco e repete o movimento. Mas o dono está ali, é uma lição, diz-me o senhor. O atrevido canino é arisco, foge, toma liberdades, e depois fica aflito. Então ele esconde-se, mas aparentemente sem resultados.
Quero voltar a casa. Estou um pouco cansado e o dia está triste demais, com aquele manto de núvens baixas que me deprime. Quando vivia em Praga e os invernos eram feitos de dias quase todos assim, pouco saía de casa duurante o dia. Esperava pela noite, porque no escuro o céu é simplesmente escuro.
Uma das principais vias do centro histórico. Vazia.
As ruas da cidade estão desertas. Paro na padaria da esquina, compro uma queijada de requeijão, genuína, à alentejana, e um pão regional. Depois, nova paragem na mercearia dos simpáticos chineses que têm aquele negócio muito local. Uvas e um queijo delicioso que já conheço de outras visitas.
Quando me sento ao computador descubro que existe uma casa nova à venda em Évora. O coração dispara. Tem o perfil adequado. E parece ter alguma fantasia. Preço, localização, terraço, estilo. Está tudo lá. E faço algo raro: pego no telefone e ligo. O contacto é mesmo do proprietário de quem gostei ao conversar.
A casa está alugada a uma empresa espanhola de construção que ali faz pernoitar o seu pessoal que se desloca a Évora para ver as obras. Há portanto que combinar com eles uma visita. Ficarei a aguardar o seu contacto, que chegará já ao serão. A casa será vista no dia seguinte.
Mas para já, até porque de momento não chove, posso ir até ao local, ver o exterior, sentir o palpitar da rua. Muito central. Na realidade uma das ruas que sai da praça do Giraldo. Talvez central de mais. Receio o barulho, cada vez estou mais sensível ao ruido.
Não ha bares nem restaurantes nas proximidades, mas não sei como será num ano normal, quando os estudantes andam por aqui.
A casa expande-se na vertical. São quatro pisos, se contar com o terraço. Gosto. Original. Para já fico com a ideia do exterior.
A casa. Essa fininha e alta.
Agora é voltar e pegar no carro. Há que recolher um desumidificador velho que estamos a comprar por 25 Euros. Encontro frente a um hotel nos arredores de Évora. Tudo normal. Equipamento recolhido e pago. Ainda paramos no Auchan para mais umas compras e depois voltar para casa e passar o resto do dia, a comer, conversar, jogar. Um dia mais tranquilo. A condizer com o tempo.
Ao serão o frio aperta. O tal desumificador tem pouco rendimento e ligo um pouco o ar condicionado para aquecer.
Não sei porquê nem exactamente quando. Algures durante a noite, chamemos-lhe sonho, chamemos-lhe um dormir meio acordado, comecei a sentir dúvidas sobre Évora. A sua quietude sussurou-me uma ameaça ao ouvido. A imagem das pessoas de máscaras na rua, religiosamente, num concelho com zero casos activos de COVID-19 e sabendo-se o que se sabe sobre transmissão através do ar sem exposição prolongada e em espaços abertos. O deserto em que se transformam as ruas, agora já não só depois do final das horas de expendiente mas também, apesar de em menor escala, ao longo de todo o dia. Tudo isto veio e semeou uma semente de dúvida de que guardo uma vaga memória.
Talvez por isso não acordei no meu melhor. Preparar uma infusão quente e sair para comprar o jornal. Aqui perto, ao lado da tasca de onde me meio o jantar de ontem. Sorri interiormente ao ver uma enorme pilha de Expressos. Lá de onde veio, ou não recebem ou se há, será um par deles, ao lado de uma infinidade de Correios da Manhã. Uma diferença notada e anotada.
No regresso a infusão de alcachofra estava à temperatura ideal para começar a ser sorvida. E o sol tentava sorrir, encontrando forma de enviar os seus ternos raios através das camadas de lâminas frias das núvens que haveriam de lutar ao longo do dia pelo domínio dos céus.
Sentei-me a ler o Expresso, deliciado, naquele cadeirãozinho de leitura que coloquei à beira da janela.
Com tanta matéria para entreter o tempo passou. Algumas pausas para jogar xadrez. Lavar a louça, fazer a cama. Chega a hora de almoço para uma refeição muito leve e vai-se passando o dia, numa modorra quase invernosa. Agora chove lá fora. Agora não. Já recomeça para logo parar. Alternância.
Pelas três, sair para visitar o primeiro museu. A preferência vai para o palácio dos Duques do Cadaval mas é provável que esteja encerrado devido à pandemia. Estava mesmo. Assim sendo, plano B: Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, mesmo ali ao virar da esquina.
Entrada gratuita nestes tempos complicados. Curto briefing do simpático agente de segurança. Concelho de origem para a estatística, passar gel nas mãos e pronto, começar.
Há quatro exposições principais patentes ao público. Começamos pelo projecto fotográfico dedicado aos monges brancos do convento da Cartuxa, nos arredores de Évora. É uma colecção de autores vários a que se deu o nome de Saudades dos Cartuxos.
A seguir, o prato forte do dia, a exposição fotográfica Ilhéus, de Moira Forjaj, dedicada às gentes da ilha de Moçambique, com retratos deliciosos, a cores. Imagino o esforço que foi encontrar pessoas que se deixassem fotografar assim, com grandes planos, por vezes a roçar a intimidade. E parece que a imagem é complementada por entrevistas e estórias contadas que se podem ouvir no website da Fundação.
E depois mais duas, um estudo de cor, com janelas feitas vitrais com fitas cromáticas, a que Deanna Stirlin deu o nome de Strata, e uma exposição da arte de Pedro Calhau chamada Do Inesgotável.
Para terminar, uma vista de olhos nos jardins deste antigo palácio da Inquisição, onde se destacam os frescos conhecidos como Casas Pintadas. Não fosse o céu cinzento a ameaçar outra carga de chuva e estaria ali muito bem durante um bocado.
A foto do dia do Templo de Diana
Agora, ali tão perto, o Quiosque do Jardim de Diana chama-me. Não consigo resistir a esta esplanada, o meu pouso habitual, acho que já me posso referir assim a ele. A água das pedras com limão de sempre. Mesas bem compostas, como gosto, nem cheio nem vazio, bom ambiente, apesar do céu escuro.
E pronto. Agora, antes de voltar a casa, um passeio ziguezagueante por ruas e ruelas. Numa, um jovem passa de bicicleta, a falar ao telefone. Ainda escuto “Só? Tão pouco tempo? Da outra vez foi muito mais…”. E com estas palavras perder o controlo da maquineta, bate com a roda no flanco de um carro parado e bate com a cara no tejadilho.
Olha para mim, embaraçado e confuso. Pois é amigo, falar ao telefone e andar de bicicleta é capaz de não ser uma boa ideia.
Não foi nesta rua mas numa não muito diferente
Logo se abre uma janela. A dona do carro. Pergunta “o que é que se passou aqui”, e o rapaz, descreve com honestidade o que se passou, detendo-se por um segundo para responder “não” à pergunta “olha lá, não és o Francisco” e “sim” à questão “Não és filho de [não consegui apanhar]?”. Diz o rapaz “nem sei de quem é o carro”, ela… “é meu”.
E a senhora, muito calma e maternal: “E aleijaste-te, não?”. “E o carro, ficou muito estragado?”. E o resto não ouvi, mas sei que lá de onde venho um incidente assim seria profusamente regado com uma peixarada à altura.
Chego a casa e preparo um lanche ajantarado que vou saborear para o terraço com a revista do Expresso e está-se mesmo muito bem. Como que por milagre uma grande mancha de céu mesmo por cima de mim está agora totalmente azul. A passarada está louca de primavera e não há vento. Só se houve chilrear, o sol aquece-me a pele. O prato de presunto, queijo curado, azeitonas e broa de milho vai sendo despachado, empurrado por uns tragos de Porta da Ravessa.
O dia terminou em ambiente doméstico, como suspeito que acontecerá com todos que serão passados em Évora. Um episódio da série Marseille, que vejo no Netflix, jogar um pouco de Fortenite e… escrever o diário, claro.
O céu lá fora está triste. Mais tarde deixará rolar uma ou duas lágrimas, inconsequentes. Vai ser um dia assim sem jeito, sem nada para contar, de horas que se seguem a horas, rotinas que se sucedem.
Uma manhã de actividades comuns que se sucedem… tratar de algum expediente, aviar um pouco de trabalho, ler, jogar xadrez e Fortenite, arrumar e limpar.
A Casa. A minha casa por um mês.
O terraço está impracticável. O vento sopra, frio, e não há um raio de sol para compensar a agressão. Come-se qualquer coisa à laia de almoço e acaba-se de se ver a série A Serpente. Preciso de ir ao Espaço Casa e comprar um par de coisas que fazem falta por aqui.
Chove um pouco sobre o carro quando venço os cerca de três quilómetros. Gostei da loja, com colaboradoras simpáticas, bem arrumada, com os produtos atractivos de sempre. Saio com um preciso. Alguns tupperwares, especialmente necessários para fazer gelados. Um cestinho para colocar em cima da mesa com os tarecos do quotidiano, como as chaves e a máscara. E uma tábua de corte.
Dia cinzento
A tarde passa-se em casa das mesmas tarefas de antes. Apenas das sete da tarde saio um pouco. O dia continua cinzento. Um pequeno passeio até ao Quiosque do Jardim Diana, a tal esplanada que ontem confessei ser a minha favorita em Évora.
Só que nesta cidade um passeio até a um local raramente se limita a ser uma ida e uma volta directa. Há sempre aquele chamamento sem retorno que me empurra por vielas e quando dou por mim estou perdido com o vento, a ver algo, sempre novo, fascinante.
A imagem diária do Templo de Diana
E foi assim que andei às voltas, visitando aqui e acolá um ponto já conhecido, uma casa vista numa qualquer imobiliária, talvez um antigo sonho desfeito por uma imperfeição descoberta ou confessada. Aquela era a que não tinha terraço, acoloutra sem planos e autorizações para as alterações feitas. E a que afinal já nem estava à venda. Sempre um grão de areia.
Apesar da ameaça de chuva e de ser final do dia – hora a que o centro histórico se esvazia como um balão furado – a esplanada tinha alguns clientes e entre eles uma pequena família de turistas alemães. Talvez os primeiros turistas estrangeiros que vi em dois dias.
Sentei-me a beber a minha água das pedras com limão. O jardim também tinha algumas pessoas. Duas amigas falavam em inglês. Quase de certeza estudantes Erasmus. E depois, três ou quatro pares de namorados para além do pai que levava o seu rebento a um pouco de exercício no seu triciclo.
Há tanto tempo que aqui me queria sentar…
Levantei-me e fiz algo que há muito desejava fazer, sentar-me num ponto único com vista sobre a cidade desde a extremidade do jardim. Dali, se soubesse para onde olhar, veria o “meu” terraço. Sei disso porque de lá vejo o muro do jardim.
Agora, ver a casa de que o meu agente imobiliário favorito me falou, na rua do popular restaurante Quarta-feira.
As ruas estão no seu melhor com este lusco-fusco. Tarda o acender dos candeeiros. Já são oito horas, a escuridão ameaça, mas nada de iluminação camarária. Espero ansiosamente pelo momento. É a melhor altura para fotografar uma cidade histórica, aquela em que a luz natural que se esvai toca os amarelos da iluminação pública.
Passo pelo Quarta-Feira. A casa não a encontro, mas sei que nesta rua não. Demasiada agitação, mesmo nesta época estranha. O restaurante movimenta muita gente, ouvem-se os carros a passar na rua principal e ainda há outro bar, mais ou menos fechado, mas olhando-me, como que numa ameaça velada.
No regresso a casa ganho vontade de comer um prato de comida quente. Vou à Tasca das Portas de Avis e peço meia-dose de lombo de porco assado. Estão quatro homens à espera. Para ser a sopa dos solteiros. Está também um polícia que reconheço de outras andanças. Nada do que possam estar a pensar: o ano passado visitei uma casa que estava à venda e o simpático graduado da PSP era o proprietário. E agora ali estava, no interior do restaurante, a recolher os quatro sacos que continham a encomenda para a corporação. Só que não eram quatro mas três. O quarto era o meu lombo, que escapou por pouco à abdução, e apenas porque o heróico funcionário do restaurante correu através da polícia, como quem diz “agarra que é ladrão”. E voltou, com o meu saco, que me entregou diligentemente.
E foi assim que regressei a casa com um jantar para me acompanhar na fase iniciar do serão, enquanto via um pouco de futebol.
Depois, pouco mais. Um episódio da série Caminos, produzida pela RTP, sobre um grupo de caminhantes que no Caminho de Santiago encontra a amizade mútua.
Dormi precisamente (OK, mais minuto menos minuto) sete horas. Vá, dentro da normalidade para este corpinho. Não dormi especialmente mal nem bem. Havia algum barulho na hora de ferrar no sono e sei como sou comichoso com essas coisas. Nada que uns bons tampões de ouvido não resolvam. Algum frio durante a noite, mas fora isso foi uma soneca revigorante e quando pelas nove e pouco abri os olhos estava como novo.
As duas primeiras horas de residente oficioso em Évora (não sei porquê, só depois de acordar aqui sinto que posso reivindicar o título) foram passadas a beliscar-me, a compreender que estava a viver algo que certamente dentro de uns anos recordarei com uma nostalgia sem fim. É preciso repetir, escrever mil vezes no quadro: “estes dias são maravilhosos e vou sentir falta deles quando se acabarem”.
Li no terraço durante um bom bocado, talvez uma hora. Nos dias que correm estou na fase final de A Escola do Paraíso, um livro de um autor português que descobri recentemente, José Rodrigues Miguéis. O escritor teve uma vida longa que o levou ao longo de quase todo o século XX. A sua maior parte foi passada nos EUA, onde se refugiou para escapar ao autoritarismo do Estado Novo e ali foi jornalista e tradutor, escrevendo, entre outras, esta obra onde nos pinta com palavras o retrato da Lisboa do início de século, a Lisboa que o viu nascer e crescer. Na realidade é um trabalho com um tom auto-biográfico, que nos leva a viajar no tempo até à capital portuguesa de então. Já agora, aconselho. Estou a adorar a riqueza da proza e o valor histórico das memórias do petiz José Rodrigues Miguéis.
Às onze horas, compras. Há que reforçar o espólio alimentar trazido do Algarve. Uma visita ao Lidl seguida de uma paragem mais breve num dos Pingo Doce da cidade. Quase 100 Euros de compras, um valor que não me é habitual, mas chego a casa com a certeza que poderei resistir a um cerco. Com Castela aqui tão perto há que prevenir.
O templo de Diana é omnipresente.
O almoço merecido foi feito de arroz de feijão e rissóis de carne e depois veio uma surpresa boa. Quem já ouviu falar de Too Good? É uma aplicação para Android, talvez também para outros sistemas operativos, não sei. O conceito explica-se de forma simples: quem tem um comércio de produtos alimentares disponibiliza através da app pacotes surpresa que são formados ao fim do dia por bens frescos que sobraram do dia, e que em vez de serem deitados fora são entregues a quem os adquirir previamente por um preço simbólico.
Ora foi preciso vir a Évora para experimentar a coisa. Encomenda feita na véspera na padaria Arte Antiga, uma loja local que vende pão e polos de grande qualidade (estão a ver a Padaria Portuguesa, aquela coisa inflacionada que vende congelados colocados no forno? É o oposto). Levanta-se antes do encerramento, que nestes dias estranhos é pelas duas da tarde. E vem a surpresa… com os 2,90 Euros do cabaz surpresa são colocados em cima da mesa dois pães alentejanos grandes, oito bolos frescos, dois sacos com uns doze bolos de canela, simples e recheados de gila, e ainda um enorme Suspiro. Feitas as contas, fiquei com uns 30 Euros e bens por uma fracção. E vou-lhes dar uso.
E é isto. Obrigado Too Good e padaria Arte Antiga.
Depois de mais um período de repouso seria altura de sair para a rua para um passeio de quatro quilómetros.
A única missão declarada da caminhada era dar uma vista de olhos ao exterior de uma casa que poderia interessar. Falsas esperanças. Localizada numa rua movimentada sei que o nível de ruido rapidamente me levaria ao desespero. Não, não é o que desejo.
Agora é andar ao sabor dos ventos, e foi assim que descobri o parque municipal, que tinha visto referido num blogue há alguns dias. O ambiente estava fabuloso. Uma esplanada logo à entrada encontrava-se lotada. Havia uma pequena fila para aviar copos de cerveja. Copos de plástico, uma aberração que nunca aceitarei.
Uma estátua da Vasco da Gama oferecida pela cidade sul-africana da Natal.
Há azul no céu, uma luz maravilhosa e aquele espírito em redor. Dá gosto. Assim como deu gosto dar um passeio pelo parque, uma agradável surpresa, onde se encontra uma fonte, muitos bancos de jardim, pavões, um coreto enorme, uma oliveira plantada em 1919 para comemorar o final da Primeira Guerra Mundial e um palácio acabado de restaurar (imagem de topo) onde a Câmara se prepara para instalar um centro interpretativo da cidade.
Numa área mais escondida do parque encontro uma hortinha comunitária muito especial: os utilizadores são crianças que aqui vêm plantar as suas alfaces e outros legumes que, digo-vos, fui encontrar com um aspecto muito desejável. Há até um espantalho. Não sei se cumpre as suas funções diligentemente, mas oferece ainda mais cor aquele cantinho.
A hortinha dos pequenitos
Eventualmente passamos pela praça do Giraldo e pelo largo d’Álvaro Velho, para aí o meu largo favorito de Évora, com a sua esplanada muito local e os dois ou três cafés e restaurantes que o rodeiam. Estava tudo normal. Ou quase. As mesas estavam quase todas cheias. As pessoas comemoram a Primavera e as tréguas dos “especialistas” e do governo, mesmo assim, de g pequeno.
Logo à frente preciso de me sentar num banco. Como ontem, senti subitamente uma impressão estranha na garganta, como se tivesse um cabelo colado às suas paredes. E enquanto recuperava a normalidade, uma senhora sentou-se no banco ao lado e disse “boa tarde”. Esperem. Ela disse “boa tarde”. Só porque sim. Isto já não se faz. Pelo menos lá para onde vivo. Com os anos habituei-me a esta inabilidade muito comum dos algarvios serem gentis para com o próximo. Fiquei a sorrir. Ainda mais.
Passamos também junto ao mercado municipal, onde no Sábado tenho planos de voltar para experimentar a feira de velharias e de frutas e vegetais que se vai reatar no seu exterior depois de meses de suspensão.
Começo a ficar cansado e que lugar melhor para retemperar forças do que na minha esplanada mais querida de Évora, junto ao templo de Diana. Faz-me sempre lembrar as esplanadas da minha terra, talvez a outras pessoas lhes faça lembrar as das suas terras, mas quando tinha 20 anos e ia namorar, era em esplanadas assim, do jardim da Estrela ao Campo Grande que me sentava para o fazer.
Estava uma tarde perfeita. As mesas todas tomadas, por gente educada e gentil, conversando em voz baixa, portugueses, que saudades que tinha de estar nos sítios bonitos do meu país rodeado de compatriotas.
Como aconteceu em Junho do ano passado em Lisboa voltei a pensar que não calculava voltar a ter oportunidade em dias da minha vida de ver Évora assim, devolvida aos seus. Passei ali um bom bocado, com uma rara cerveja no copo, a apreciar o momento.
Regressámos a casa passando pela Mouraria, metendo o nariz no pátio que serve uma casa que vimos no ano passado. Continua disponível. Tem alguns problemas mas o preço não é um deles. Deixa-nos a pensar, quem sabe.
E de volta a casa. Estou cansado, claro. Vou ler para o terraço mas a conversa não me deixa pegar no livro e com o aproximar do pôr-de-sol desce a temperatura e prefiro descer. São quase oito horas. Vou ver um bocado do jogo do Porto – Chelsea, perdido ingloriamente pela equipa portuguesa. Só falta ver uns episódios da excelente série que neste momento sigo no Netflix. Chama-se A Serpente e conta de forma quase fiel a história do serial killer francês Charles Sobhraj, destacando-se o assombroso trabalho de reconstituição de época, com a maioria da acção a tomar lugar na Tailândia de meados dos anos 70.
Oh época danada, com COVID a ameaçar confinamentos e problemas de saúde, não é a melhor para viagens e aventuras, mas é a que é e depois não há ninguém que me diga que as vindouras serão melhores, por isso a vida é para viver hoje. E hoje vou para Évora.
A manhã é feita de alternâncias. Entre a energia reduzida (infecções são tramadas) e as tarefas obrigatórias a gestão é a possível. Agora, esparramado no sofá, a jogar xadrez no tablet com um qualquer ucraniano, e depois a enfiar coisas para os sacos, selecionar na dispensa e no frigorífico o que fica, o que vai para o lixo, o que vem.
Depois há que limpar. A casa não pode ficar nesta confusão. Aspirar, lavar. Pequenos detalhes. O travar da mobília de exterior, no terraço, para que não voe em dia de especial ventania, como já aconteceu. O estendal será melhor guardar, e regar as plantas é conveniente. E isto e aquilo com o medo de esquecer algo importante. Ou não tão importante mas irritantemente necessário.
Mostro já: o quarto de Évora bem arrumadinho.
Assim se passou a manhã, depois veio o almoço e pelas 15:10, terminados os últimos preparativos, ala para norte, com uma paragem preliminar para encher de gasóleo.
Será a primeira vez que perco a forretice e sigo pela auto-estrada quase desde casa. Pela A22 até à saída para a A2 e depois sempre a rolar até finalmente deixar o percurso pago e me dirigir a Beja passando junto a Castro Verde. Já não falta muito, mais 75 km e logo chego. São 215 km que se fazem habitualmente em cerca de duas horas e vinte, mas hoje era uma chegada na famigerada hora de ponta eborense o que adicionou mais uns vinte minutos ao trajecto.
Vamos ficar com velhos amigos, a Carla e o Henrique, este ainda mais velho amigo do que ela, companheiro de muitas aventuras e tropelias nuns tempos d’ouro desta vida, há uns vinte anos que se sentem como um par de séculos.
À entrada no largo (gosto de pensar na localização como uma praceta porque tal como as pracetas lisboetas de que me lembro tem um forte vibe comunitário, é ponto de encontro de pessoas, palpita com a vida própria que o turismo de massas roubou a tantos outros locais) a Carla vinha à janela. O omen de reencontro, reforçado por um outro um pouco mais tarde quando somos nós que olhamos para a rua quando o Henrique vem a chegar.
Vibramos. Está mesmo a acontecer, esta é a nossa casa para os próximos trinta dias. Descarregar o carro, subir escadas. Já estava todo moído por ter andado para baixo e para cima quando carreguei, e agora o tratamento repete-se na descarga.
Por conversa de meses de afastamento em dia nuns minutos é sempre uma emoção. E a casa vai-se enchendo. De sacos, mochilas e monitores. Computadores, botas e jornais que vêm numa tentativa provavelmente nula de colocar a leitura em dia. Já se juntam também livros e caixotes com comida e até alguns utensílios de cozinha que não quis que me faltassem na hora de exercer o hobby dos gelados que me interessa por estes dias.
Agora é que vão ser elas, por isto tudo na ordem. Escolher recantos, preparar um escritório para um mês, deixar já as marcas pessoais pela casa, como o sabonete e os cremes de beleza na casa de banho, os carregadores bem alinhados, prontos para receber telemóveis e Kindles e GPS’s e tabletes e portáteis. Alimentos no frigorífico, uns, enquanto outros são dispersos pelos espaços da cozinha. Faz-se uma infusão.
Há vida na praceta…
Uma voz secreta disse-me para olhar pela janela e vejo que na praceta há crianças a brincar, mães atentas que zelam. E pais. Como aquele ali, que fala estranho e parece estar com uma mulher que estranho veste. Apuro o ouvido. Juntando o que vejo com o que ouço penso que serão malaios ou indonésios. O menino deles brinca com os outros, os portugueses, apenas com a linguagem internacional de gaiatos que correm e procuram laços.
Vem uma senhora de idade, máscara a esconder a face. Os meninos acenam-lhe, correm para ela, e o estrangeiro também. Balbucia qualquer coisa para a senhora, que já tinha conversado brevemente com os outros. Ela diz: “Não te entendo“. E os outros, em coro: “Está a dizer o nome dele“. Ouve-se de novo a vozinha do pequeno: “Ahmed“. E ela: “ah Mamede. Muito bem, então adeus Mamede“.
Do terraço muita telha se vê.
O dia chega ao fim. É hora de subir ao terraço e absorver a luz maravilhosa do por-do-sol. Este é um dos melhores terraços de Évora. É amplo e tem vistas em redor, nenhum outro terraço lhe faz sombra, é um espaço delicioso. Vou sonhando com as muitas horas de leitura que aqui terão lugar nas próximas semanas.
E pronto. O cansaço chega, os amigos recolhem-se. Vou ver uns bocados de jogos de futebol, é dia de Liga dos Campeões, mas talvez pela qualidade da internet a coisa não funciona como gostaria. Há pausas e a imagem não é fluída. Que se lixe. Deu para ter um cheirinho.
Vista da janela do quarto
Descubro uma possível casa para comprar. Pelo menos para ver, pode valer a pena. Não tem um terraço, que é uma condição obrigatória, mas promete um pátio interior que pelo menos nas fotos é prometedor. Faço um contacto e encaminho as coisas.
Ao serão jogo um pouco de Fortenite. Só para lhe tomar o gosto neste novo lar. E escrevo. Já disse que estou cansado, muito cansado? Vão-se fazendo horas.
Vamos lá! A aventura vai começar! Já estive em Évora dezenas de vezes, esta será diferente, será um meio “para ficar”, será uma experiência prolongada, um teste, um medir de vontades. Quando terminar se verá como ficou o desejo de aqui viver durante uns tempos, de comprar uma casita no centro histórico, de adicionar mais uma carta ao baralho da vida.
Nos últimos meses foram feitas incursões. O objectivo: de novo a ronda do mercado imobiliário. Agora, pergunte-se, não seria afinal uma loucura comprar numa cidade que se conhece apenas com o título de visitante? Seria. Então vamos nessa, e de visitante passamos ao estatuto de residente temporário. Um mês já dá para ter uma ideia, não é…? Espero que sim, porque é para isso que vamos.
As expectativas? Viver em Évora. Caminhar, explorar a região, receber alguns amigos, visitar qualquer propriedade prometedora que apareça no mercado, dar um pulo à aldeia natal, Lisboa. E viver, simplesmente. Trabalhar, ver umas séries, ler, sair á rua, ir à padaria, aos correios, vibrar com os jogos do meu Sporting, eventualmente celebrar o seu regresso aos títulos.
E para registar tudo isto, lembrei-me de criar esta espécie de blogue maluco, o diário e não só destes dias, os dias de Évora.
Então até amanhã, quando já passarei a noite no Alentejo.