Não sei porquê nem exactamente quando. Algures durante a noite, chamemos-lhe sonho, chamemos-lhe um dormir meio acordado, comecei a sentir dúvidas sobre Évora. A sua quietude sussurou-me uma ameaça ao ouvido. A imagem das pessoas de máscaras na rua, religiosamente, num concelho com zero casos activos de COVID-19 e sabendo-se o que se sabe sobre transmissão através do ar sem exposição prolongada e em espaços abertos. O deserto em que se transformam as ruas, agora já não só depois do final das horas de expendiente mas também, apesar de em menor escala, ao longo de todo o dia. Tudo isto veio e semeou uma semente de dúvida de que guardo uma vaga memória.
Talvez por isso não acordei no meu melhor. Preparar uma infusão quente e sair para comprar o jornal. Aqui perto, ao lado da tasca de onde me meio o jantar de ontem. Sorri interiormente ao ver uma enorme pilha de Expressos. Lá de onde veio, ou não recebem ou se há, será um par deles, ao lado de uma infinidade de Correios da Manhã. Uma diferença notada e anotada.
No regresso a infusão de alcachofra estava à temperatura ideal para começar a ser sorvida. E o sol tentava sorrir, encontrando forma de enviar os seus ternos raios através das camadas de lâminas frias das núvens que haveriam de lutar ao longo do dia pelo domínio dos céus.
Sentei-me a ler o Expresso, deliciado, naquele cadeirãozinho de leitura que coloquei à beira da janela.
Com tanta matéria para entreter o tempo passou. Algumas pausas para jogar xadrez. Lavar a louça, fazer a cama. Chega a hora de almoço para uma refeição muito leve e vai-se passando o dia, numa modorra quase invernosa. Agora chove lá fora. Agora não. Já recomeça para logo parar. Alternância.
Pelas três, sair para visitar o primeiro museu. A preferência vai para o palácio dos Duques do Cadaval mas é provável que esteja encerrado devido à pandemia. Estava mesmo. Assim sendo, plano B: Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, mesmo ali ao virar da esquina.
Entrada gratuita nestes tempos complicados. Curto briefing do simpático agente de segurança. Concelho de origem para a estatística, passar gel nas mãos e pronto, começar.
Há quatro exposições principais patentes ao público. Começamos pelo projecto fotográfico dedicado aos monges brancos do convento da Cartuxa, nos arredores de Évora. É uma colecção de autores vários a que se deu o nome de Saudades dos Cartuxos.
A seguir, o prato forte do dia, a exposição fotográfica Ilhéus, de Moira Forjaj, dedicada às gentes da ilha de Moçambique, com retratos deliciosos, a cores. Imagino o esforço que foi encontrar pessoas que se deixassem fotografar assim, com grandes planos, por vezes a roçar a intimidade. E parece que a imagem é complementada por entrevistas e estórias contadas que se podem ouvir no website da Fundação.
E depois mais duas, um estudo de cor, com janelas feitas vitrais com fitas cromáticas, a que Deanna Stirlin deu o nome de Strata, e uma exposição da arte de Pedro Calhau chamada Do Inesgotável.
Para terminar, uma vista de olhos nos jardins deste antigo palácio da Inquisição, onde se destacam os frescos conhecidos como Casas Pintadas. Não fosse o céu cinzento a ameaçar outra carga de chuva e estaria ali muito bem durante um bocado.

Agora, ali tão perto, o Quiosque do Jardim de Diana chama-me. Não consigo resistir a esta esplanada, o meu pouso habitual, acho que já me posso referir assim a ele. A água das pedras com limão de sempre. Mesas bem compostas, como gosto, nem cheio nem vazio, bom ambiente, apesar do céu escuro.
E pronto. Agora, antes de voltar a casa, um passeio ziguezagueante por ruas e ruelas. Numa, um jovem passa de bicicleta, a falar ao telefone. Ainda escuto “Só? Tão pouco tempo? Da outra vez foi muito mais…”. E com estas palavras perder o controlo da maquineta, bate com a roda no flanco de um carro parado e bate com a cara no tejadilho.
Olha para mim, embaraçado e confuso. Pois é amigo, falar ao telefone e andar de bicicleta é capaz de não ser uma boa ideia.

Logo se abre uma janela. A dona do carro. Pergunta “o que é que se passou aqui”, e o rapaz, descreve com honestidade o que se passou, detendo-se por um segundo para responder “não” à pergunta “olha lá, não és o Francisco” e “sim” à questão “Não és filho de [não consegui apanhar]?”. Diz o rapaz “nem sei de quem é o carro”, ela… “é meu”.
E a senhora, muito calma e maternal: “E aleijaste-te, não?”. “E o carro, ficou muito estragado?”. E o resto não ouvi, mas sei que lá de onde venho um incidente assim seria profusamente regado com uma peixarada à altura.
Chego a casa e preparo um lanche ajantarado que vou saborear para o terraço com a revista do Expresso e está-se mesmo muito bem. Como que por milagre uma grande mancha de céu mesmo por cima de mim está agora totalmente azul. A passarada está louca de primavera e não há vento. Só se houve chilrear, o sol aquece-me a pele. O prato de presunto, queijo curado, azeitonas e broa de milho vai sendo despachado, empurrado por uns tragos de Porta da Ravessa.
O dia terminou em ambiente doméstico, como suspeito que acontecerá com todos que serão passados em Évora. Um episódio da série Marseille, que vejo no Netflix, jogar um pouco de Fortenite e… escrever o diário, claro.










