Dormi precisamente (OK, mais minuto menos minuto) sete horas. Vá, dentro da normalidade para este corpinho. Não dormi especialmente mal nem bem. Havia algum barulho na hora de ferrar no sono e sei como sou comichoso com essas coisas. Nada que uns bons tampões de ouvido não resolvam. Algum frio durante a noite, mas fora isso foi uma soneca revigorante e quando pelas nove e pouco abri os olhos estava como novo.
As duas primeiras horas de residente oficioso em Évora (não sei porquê, só depois de acordar aqui sinto que posso reivindicar o título) foram passadas a beliscar-me, a compreender que estava a viver algo que certamente dentro de uns anos recordarei com uma nostalgia sem fim. É preciso repetir, escrever mil vezes no quadro: “estes dias são maravilhosos e vou sentir falta deles quando se acabarem”.
Li no terraço durante um bom bocado, talvez uma hora. Nos dias que correm estou na fase final de A Escola do Paraíso, um livro de um autor português que descobri recentemente, José Rodrigues Miguéis. O escritor teve uma vida longa que o levou ao longo de quase todo o século XX. A sua maior parte foi passada nos EUA, onde se refugiou para escapar ao autoritarismo do Estado Novo e ali foi jornalista e tradutor, escrevendo, entre outras, esta obra onde nos pinta com palavras o retrato da Lisboa do início de século, a Lisboa que o viu nascer e crescer. Na realidade é um trabalho com um tom auto-biográfico, que nos leva a viajar no tempo até à capital portuguesa de então. Já agora, aconselho. Estou a adorar a riqueza da proza e o valor histórico das memórias do petiz José Rodrigues Miguéis.
Às onze horas, compras. Há que reforçar o espólio alimentar trazido do Algarve. Uma visita ao Lidl seguida de uma paragem mais breve num dos Pingo Doce da cidade. Quase 100 Euros de compras, um valor que não me é habitual, mas chego a casa com a certeza que poderei resistir a um cerco. Com Castela aqui tão perto há que prevenir.

O almoço merecido foi feito de arroz de feijão e rissóis de carne e depois veio uma surpresa boa. Quem já ouviu falar de Too Good? É uma aplicação para Android, talvez também para outros sistemas operativos, não sei. O conceito explica-se de forma simples: quem tem um comércio de produtos alimentares disponibiliza através da app pacotes surpresa que são formados ao fim do dia por bens frescos que sobraram do dia, e que em vez de serem deitados fora são entregues a quem os adquirir previamente por um preço simbólico.
Ora foi preciso vir a Évora para experimentar a coisa. Encomenda feita na véspera na padaria Arte Antiga, uma loja local que vende pão e polos de grande qualidade (estão a ver a Padaria Portuguesa, aquela coisa inflacionada que vende congelados colocados no forno? É o oposto). Levanta-se antes do encerramento, que nestes dias estranhos é pelas duas da tarde. E vem a surpresa… com os 2,90 Euros do cabaz surpresa são colocados em cima da mesa dois pães alentejanos grandes, oito bolos frescos, dois sacos com uns doze bolos de canela, simples e recheados de gila, e ainda um enorme Suspiro. Feitas as contas, fiquei com uns 30 Euros e bens por uma fracção. E vou-lhes dar uso.

Depois de mais um período de repouso seria altura de sair para a rua para um passeio de quatro quilómetros.
A única missão declarada da caminhada era dar uma vista de olhos ao exterior de uma casa que poderia interessar. Falsas esperanças. Localizada numa rua movimentada sei que o nível de ruido rapidamente me levaria ao desespero. Não, não é o que desejo.
Agora é andar ao sabor dos ventos, e foi assim que descobri o parque municipal, que tinha visto referido num blogue há alguns dias. O ambiente estava fabuloso. Uma esplanada logo à entrada encontrava-se lotada. Havia uma pequena fila para aviar copos de cerveja. Copos de plástico, uma aberração que nunca aceitarei.

Há azul no céu, uma luz maravilhosa e aquele espírito em redor. Dá gosto. Assim como deu gosto dar um passeio pelo parque, uma agradável surpresa, onde se encontra uma fonte, muitos bancos de jardim, pavões, um coreto enorme, uma oliveira plantada em 1919 para comemorar o final da Primeira Guerra Mundial e um palácio acabado de restaurar (imagem de topo) onde a Câmara se prepara para instalar um centro interpretativo da cidade.
Numa área mais escondida do parque encontro uma hortinha comunitária muito especial: os utilizadores são crianças que aqui vêm plantar as suas alfaces e outros legumes que, digo-vos, fui encontrar com um aspecto muito desejável. Há até um espantalho. Não sei se cumpre as suas funções diligentemente, mas oferece ainda mais cor aquele cantinho.

Eventualmente passamos pela praça do Giraldo e pelo largo d’Álvaro Velho, para aí o meu largo favorito de Évora, com a sua esplanada muito local e os dois ou três cafés e restaurantes que o rodeiam. Estava tudo normal. Ou quase. As mesas estavam quase todas cheias. As pessoas comemoram a Primavera e as tréguas dos “especialistas” e do governo, mesmo assim, de g pequeno.
Logo à frente preciso de me sentar num banco. Como ontem, senti subitamente uma impressão estranha na garganta, como se tivesse um cabelo colado às suas paredes. E enquanto recuperava a normalidade, uma senhora sentou-se no banco ao lado e disse “boa tarde”. Esperem. Ela disse “boa tarde”. Só porque sim. Isto já não se faz. Pelo menos lá para onde vivo. Com os anos habituei-me a esta inabilidade muito comum dos algarvios serem gentis para com o próximo. Fiquei a sorrir. Ainda mais.
Passamos também junto ao mercado municipal, onde no Sábado tenho planos de voltar para experimentar a feira de velharias e de frutas e vegetais que se vai reatar no seu exterior depois de meses de suspensão.
Começo a ficar cansado e que lugar melhor para retemperar forças do que na minha esplanada mais querida de Évora, junto ao templo de Diana. Faz-me sempre lembrar as esplanadas da minha terra, talvez a outras pessoas lhes faça lembrar as das suas terras, mas quando tinha 20 anos e ia namorar, era em esplanadas assim, do jardim da Estrela ao Campo Grande que me sentava para o fazer.
Estava uma tarde perfeita. As mesas todas tomadas, por gente educada e gentil, conversando em voz baixa, portugueses, que saudades que tinha de estar nos sítios bonitos do meu país rodeado de compatriotas.
Como aconteceu em Junho do ano passado em Lisboa voltei a pensar que não calculava voltar a ter oportunidade em dias da minha vida de ver Évora assim, devolvida aos seus. Passei ali um bom bocado, com uma rara cerveja no copo, a apreciar o momento.
Regressámos a casa passando pela Mouraria, metendo o nariz no pátio que serve uma casa que vimos no ano passado. Continua disponível. Tem alguns problemas mas o preço não é um deles. Deixa-nos a pensar, quem sabe.
E de volta a casa. Estou cansado, claro. Vou ler para o terraço mas a conversa não me deixa pegar no livro e com o aproximar do pôr-de-sol desce a temperatura e prefiro descer. São quase oito horas. Vou ver um bocado do jogo do Porto – Chelsea, perdido ingloriamente pela equipa portuguesa. Só falta ver uns episódios da excelente série que neste momento sigo no Netflix. Chama-se A Serpente e conta de forma quase fiel a história do serial killer francês Charles Sobhraj, destacando-se o assombroso trabalho de reconstituição de época, com a maioria da acção a tomar lugar na Tailândia de meados dos anos 70.










